São quase 9 da manhã e ainda aqui estou fechado. Eu sei que a drogaria só abre às 9 e meia e o Sr. Domingos atrasa-se sempre às segundas, mas a esta hora já o Zé deve estar a passar por minha casa para depois ir buscar o Manel. Atravessamos sempre juntos o Pátio de D. Fradique, eu fico logo ali em São Tomé e eles descem para a Praça da Figueira.
E pensar que ainda ontem foi a minha vez de levar uma meia para fazer a bola de futebol, com uns jornais bem metidos lá para dentro, até saltava! A minha mãe bem que dá pela falta de um par de vez em quando, sinto o olhar cerrado dela sobre mim a decidir se tenho culpa ou não.
Encontramo-nos todos lá no largo do Castelo e jogamos até nos chamarem para jantar. As miúdas olham para nós sentadas nos muros enquanto roem alfarroba. A Ada é que sobe sempre às árvores e manda cá para baixo para as outras. No outro dia também me aproximei para lhe pedir uma, mas ela, empoleirada num dos galhos mais altos, mandou-me pôr a andar. É sempre assim, a não ser quando o Manel falha um golo e manda a bola para cima dela de propósito, só aí é que ela sorri sem que ninguém dê conta.
Ontem os Legionários andavam com um olho no burro e outro no Benfica, então aproveitámos para nos aproximar mais dos canhões. Sempre quisemos tocar neles enquanto olhamos para o rio. Quando vimos que não estava ninguém o Zé chamou: “Ó Diogo!! Anda! Já viste isto?! Faz de conta que vamos disparar!”. Que emoção que foi, bolas! Pusemo-nos os três por detrás dos canhões na nossa batalha imaginária pela conquista de Lisboa!
De repente o ar gelou e ouvimos aquela voz grave que tanto temíamos: “Ó miúdo! O que é que estás a fazer? Saiam já daí!!”. Parece que aquele frio no estômago nos fez saltar no ar e começámos todos a correr para o beco, daí é só entrar na casa da Ti Ana que saímos outra vez lá no Pátio. Quando arranquei vi que escorregava na calçada.
Eram os sapatos novos que a mãe me comprou.
Pregou as solas com as cardas para as fazer durar mais.
Escorreguei para o túnel de medo que me trouxe até aqui. Para esta cela escura da Esquadra cá do bairro, onde ouço o elétrico ao longe. Enquanto era arrastado pelo homem da voz grave, vi como se virou o irmão mais velho do Zé aos dois que pegaram no irmão. Vi-o rir quando lhe sangrou o nariz e mandar-se outra vez contra os dois.
Quem me dera ser assim quando crescer, ser do grupo que responde sempre na mesma moeda e que às vezes os deixa pior do que os deixam a eles. Ser o irmão do Zé e não este miúdo que escorrega por causa das solas novas ou das solas gastas.
Ouço uns passos pelo corredor e vejo o meu Tio Necas que me pisca o olho: “Anda lá, foram só 3 escudos e nem se pensa mais nisso, já passou”.
Corri porta fora para a Drogaria! O que vale é que é sempre a descer e já conheço aquele embalo, de quando adormecemos de manhã com o sorriso da Ada, que de repente me manda pôr a andar e me faz mover o mundo.
A vida é tão colorida que nem é preciso imaginar histórias. Basta passar uma tarde a ouvir os meus Avós castiços, uma união transgressora entre uma jovem do Bairro do Castelo e um jovem da Encosta do Castelo, que passaram uma boa parte da sua vida a tentar viver entre as restrições de uma ditadura.