Hoje é definitivamente uma daquelas manhãs em que custa sair do meio dos lençóis. Já atirei o edredão para trás duas vezes, arrependi-me e voltei a afundar-me neste remoinho. E ainda aqui estou.
Quando subi as escadas do prédio às 4 da manhã a tentar não fazer barulho senti aquela adrenalina da rebeldia. Não tinha posto na minha bucket list que estas noites são para ser rotina? Quero lá saber que isso tenha sido aos 20, é como o prazo de validade nos iogurtes, são conceitos flexíveis.
Acho que vou ficar aqui mais um bocadinho a sentir os raios de luz que sacodem este torpor e a sonhar mais um minuto, só mais um minuto. Ainda tenho a sensação dos meus dedos frios, não conseguia pôr o isqueiro a funcionar até que chegaste tu. Com estas manias de cavalheiro de outro século ofereceste-me lume. As distâncias que se reduzem voltam a dar aquela sensação de 4 da manhã.
Os teus olhos são surpreendentemente claros à luz da chama. Quando os vi pela primeira vez no escuro daquele bar subterrâneo nunca diria. Fugaz, aparecias e desaparecias para te mostrar presente.
Enrosco-me mais um pouco nesta reviravolta, culpa tua e do teu plano maléfico. Combinaste com o destino aparecer agora, no único ponto que os nossos caminhos poderiam ter em comum antes de voltarem a correr paralelos.
Esqueceste-te dos semáforos, das filas de trânsito, das estradas cortadas e das greves do metro. Esqueceste-te dos sentidos proibidos, dos becos sem saída e do GPS que te faz andar às voltas. Esqueceste-te que todos os dias corrermos paralelos a centenas de pessoas com as quais nunca nos cruzamos. Esqueceste-te que quando sobes para o autocarro não vês aqueles que descem. Esqueceste-te que nem todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio e esqueceste-te que há, de facto, rios que correm lado a lado sem nunca se cruzarem.