No crepúsculo dos sonhos

Caminhava nas ruas vazias do fim da noite e prenúncio de um novo dia. Através de uma janela ouve o trinado cansado de uma guitarra que lhe lembra o seu fado. Dentro da porta um último dedilhar rouco, uma garganta seca de fumo, uma voz pastosa a pedir o último grogue.

Naquela hora mágica em que os últimos olhos cansados se cruzam com os primeiros ensonados. Onde quem trabalha de sol a sol atravessa os corpos da festa, na única oportunidade que têm de sentir o seu calor que esmorece e o seu perfume que se dilui.

E ele, de alma cansada, pensa ouvir os barcos do amanhecer no Cais do Sodré, de caminhar pelas ruas de Santos com aquele frenesim no estômago de copos vazios e coração cheio. Segue-lhes a música e dá por si numa Praça Estela vazia, no Mindelo que dorme preguiçoso só mais dez minutos.

Cidade que se desperta com calma do seu embalo morno. Tão diferente do sol da sua que se ergue de uma só vez. E ele, confuso, olha-a pela janela: cidade mulher da sua vida que o abandona a cada manhã e o recebe a cada entardecer resgatando-o da sua solidão. Em ambas encontrou vida num rebuliço de risos mais ou menos escancarados. A ambas entregou o seu coração por inteiro, sem nunca pensar que as traiu.

A sua mente alterna entre os universos paralelos das suas cidades, que crê unirem-se a cada palavra que as liga, a cada expressão que o transporta. Pensava que nostalgia que traz no peito só se podia traduzir em português, mas descobriu na esquina de um bar que ela se desafoga em crioulo.

Só ali, nos acordes de mais uma canção, sente que a dor se transforma em alegria. Que a melodia que toca triste para os outros aquece o coração de quem pensa em duas línguas que se unem.

Sentado na Praça Nova do Mindelo ouve o restolhar das árvores que soam como as fontes do Rossio. Inspira fundo e abre os olhos para o seu mundo único, aquele que leva consigo no peito junto à saudade.

By Marta

Este é um espaço onde se cruzam pensamentos, línguas, histórias deste mundo e dos que criamos. Um blog e portefólio pessoal, onde o universo de cada um de nós é atravessado por uma linha transversal de emoções, ideias e sonhos.

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