Em tempos de reclusão não há nada como aproveitar para olhar para dentro do nosso mundo e sonhar com aquele que nos aguarda lá fora. O ritmo frenético que nos empurrava de uma atividade para outra, muitas vezes contrariados, de repente parou. Como num jogo do macaquinho do chinês, apanhou os audazes desprevenidos e bloqueou os temerosos nos seus propósitos.
Tínhamos tantas intenções para este novo ano, mas estávamos realmente a levá-las a cabo? Agora fomos obrigados a parar, a distanciar-nos dos outros e a passar tempo com quem mais negligenciamos: nós mesmos. E este tempo a sós vai levar-nos a reflectir sobre como vamos querer aproveitar o resto do ano que teremos pela frente, depois de sermos privados de semanas e semanas das nossas vidas em pleno.
A sonhar de olhos abertos volto para os rostos de quem me ensinou tudo isto, numa ilha do Atlântico simultaneamente abençoada e esquecida. Um pedacinho de céu que às vezes te faz pensar ser aquele o teu paraíso na terra, mas cujo sofrimento te faz rachar o coração num choro sem lágrimas, já gastas nas dores do nascimento daquela nação.
No que ficou em mim da criança que fui, olho ao meu redor e imagino-me noutras ruas, noutras latitudes e noutro calor. As máscaras sem expressão com que me cruzo são os sorrisos abertos das pessoas que conheci; o silêncio das ruas transforma-se naquele vento sem palavras no topo do Monte Verde; a música abafada entre quatro paredes transforma-se numa noite no Nho Djunga, de copo em riste e ritmo no pé.
Com a vida suspensa, penso na ilha que me ensinou a ser mais livre, mais autêntica, mais corajosa. Graças às conversas noite adentro, às aventuras de uma tarde lenta, aos encontros com outros universos, os sentimentos tornaram-se mais nítidos nos momentos de solidão.
Abraçar os nossos medos é como mergulhar numa onda do mar: durante o salto, o medo no estômago torna-se na adrenalina do voo. Este tempo vai ser como recuperar fôlego antes de nos lançarmos. Este ano de 2020 vai ser o nosso: com meses que vão ser uma segunda oportunidade, uma vontade renovada de sermos nós mesmos e a determinação de viver os nossos sonhos acordados.