Os prédios parecem-me todos iguais nesta periferia de betão. Talvez a Ana tenha razão, começar a andar com um mapa seria de bom uso, porque a minha memória de taxista lisboeta de nada me serve aqui nas ruas da Reboleira. Um sítio de que, até hoje, só tinha referências vagas e que me lembra histórias tristes. Este domingo chuvoso também não ajuda. Não há nada mais deprimente do que esta chuva miudinha que cai sem parar, a borrifar-nos.
29, 31, 33.
Não era isto que tinha em mente quando me tornei jornalista. Ao fim destes anos todos calha-me sempre a fava: histórias macabras e sem interesse algum. Eu sei que não sou nenhum García Márquez, mas, pelo andar da coisa, nem 100 anos serão suficientes para acabar o meu romance. Ainda me tratam como o estagiário lá do sítio, obrigado a passar os domingos a explorar sítios que preferia não saber que existem.
35, 37 e – ei-lo – 39. Toco à campainha.
Abre-se uma cortina numa das janelas mais altas e um olhar desconfiado fixa-me. Tento sorrir, mas os lábios não respondem. De facto, a síntese do meu chefe não foi lá muito animadora.
O elevador está avariado; as escadas são estreitas e há vida por trás de cada porta. Tachos, televisões, pais que berram com os filhos.
Sexto andar, uma porta abre-see e um vulto assoma. Não o imaginara tão alto. Em silêncio, aponta-me o sofá logo ali à entrada do apartamento. Senta-se na poltrona mais pequena, perto da janela, e fica emoldurado pela vista de prédios sem fim e pelas várias fotografias de família poisadas sobre o móvel a seu lado. Numa delas, há um grupo de pessoas na praia, cabelos revoltos pelo vento, enroladas em mantas e xailes enquanto posam para a fotografia. Parece-me a Praia das Maçãs e, de repente, sinto uma imensa saudade do mar de Inverno.
— Finalmente veio, — diz ele. — Estou há muito tempo para contar o que se passou e nunca tive resposta às minhas cartas.
— Compreendo. Sabe, temos muitas notícias para dar, isto cada dia há mais histórias e não imagina a pilha de cartas que temos sempre por ler.
— E que tenho eu a ver com isso? O que tenho para lhe contar é diferente, não sou mais um pedaço de papel na mesa de ninguém.
Engoli em seco. Bem que a sua letra determinada deixava adivinhar alguém seguro de si. Mas os relatos não tinham lógica nem ordem, pareciam de mais um doido que voltou da guerra. Alguém com quem eu não queria estar fechado numa sala de estar estreita, num apartamento desconhecido. Estudo o ambiente. A casa está limpa, as fotografias são os únicos sinais de vida, nem plantas, nem sons, nem gente. Em cima da mesa de jantar, enfileiram-se várias caixas de medicamentos. Sinto-me observado.
— Percebo a sua curiosidade. Parece difícil que uma vida tão grande caiba nesta caixa de fósforos a que chamam casa. Mas isso não importa. — estende-me uma caixa de biscoitos — Sirva-se, foi a vizinha do lado que os fez. Uma mulherzinha estúpida, mas traz-me sempre coisas deliciosas, por isso vou-a aturando quando se lamenta dos filhos que não ligam e sei lá eu mais o quê da sua vidinha patética.
Apesar do nó no estômago, o cheiro a canela fez-me crescer água na boca. Recordo os Natais da minha infância e histórias fantásticas sobre a vida dos meus avós. Estou mais relaxado e quase entusiasmado.
— A oportunidade que lhe dou hoje é única. Você é a pessoa certa para contar a minha história como deve de ser. Há anos que leio os seus textos e não são nada maus. Mas falta-lhe viver.
— Falta-me viver? Como assim?
— Gosto dos seus textos porque consegue dar dignidade aos culpados dos piores crimes. Parece um artista que dá a melhor luz à sua arte e, por isso, acaba por embelezar as histórias dos outros. É um bocado como os quadros da nobreza que vemos pendurados nos museus. Acha que aquela gente era toda assim tão bonita? Pesava era a vaidade do pintor, seja por orgulho ou por sobrevivência. E éesse o seu caso. — diz com um tom final ameaçador.
— Esses adultos já foram crianças, já foram indefesos. Merecem ser tratados como pessoas que são, mesmo quando cometeram crimes atrozes. Não compreendo é o que isso tem a ver com viver.
— Leio os seus artigos e crónicas há anos. Conheço-o bem. Falta-lhe o conhecimento da alma humana, do mal que existe dentro de cada um de nós e da brutalidade que acontece quando o libertamos de todas as correntes. Falta-lhe conhecer gente verdadeira. Acorde, homem! O seu estilo está cheio de uma ingenuidade inverossímil. Falta-lhe sentir-se preso por um fio, num limbo, num dilema. Também sei que anda há anos às voltas com um romance, mas ainda não encontrou o protagonista certo. Pois bem, tenho-o guardado para si. Isto, se concordar em dar-lhe a dignidade que ele merece.
O nó no estômago estica de repente. Tudo o que mais preciso é de um verdadeiro personagem para o meu romance e tudo vai mudar. Acabaram as horas extras, o ordenado ridículo, os artigos sobre crimes baratos.
— Ótimo. Ainda bem que me está a ouvir com atenção. Essa chama nos olhos é tudo o que eu queria ver. Mas o seu personagem tem um preço.
— Que preço? — a voz sai-me como se não fosse minha.
— Tenho noventa anos, a justiça nunca me apanhou, os remorsos também não. E, no entanto, estou farto de passar despercebido. Foi sempre tudo como eu quis, mesmo quando me entusiasmei e não segui à risca todos os meus passos. Acho que preciso de um desfecho dramático para tornar o seu personagem um símbolo,numa história.
Levanta-se e olha para fora da janela. — Ajude-me, por favor.
Aproximo-me da janela e ajudo-o a abri-la. Ele inspira o ar frio de Dezembro a plenos pulmões.
De repente, sinto um puxão no meu braço, o corpo do velho salta à minha frente e fica suspenso da janela enquanto me aferra a mão. Aperto-a com toda a força que tenho e o sangue parece esvair-se do meu corpo.
— Solte-me. Solte-se! Sinta por uma vez o que é tirar a vida a alguém. Olhe-me nos olhos e solte-me sem remorsos! Deixe essa sensação invadi-lo! Prometo-lhe, terá o seu personagem!
O meu personagem.
Solto-lhe a mão e o tempo acelera enquanto ele cai no vazio, liberto. Cá de cima vejo uma mancha que se alastra e o que me parece um sorriso.
Estou eufórico, apavorado, excitado, ansioso. Fora de mim, sinto-me eu. Livre. Desgraçado. Quero fugir.
De repente, vejo-o: sobre a mesa, um monte de folhas e um título na primeira: “Memórias de uma vida impune”.
Por baixo, a minha assinatura.
Exercício feito durante a Pós-Graduação em Escrita Criativa. As palavras em negrito tinham de ser incorporadas na história.