Sei que é muito cedo pelo nevoeiro cerrado que vem do rio e me envolve como lençóis que pedem só mais cinco minutos. Ao longe, a buzina de um barco soa-me ao despertador que ignoro todas as manhãs. O som das gaivotas faz-me pensar que talvez venha aí tempestade, até que lembro que elas, como nós, se tornaram marinheiros de terra firme.
A neblina é tão densa que consigo enrolá-la entre os dedos e sentir como me escapa. Trepa pelas colinas de cada lado, enquanto fico de novo sozinho no Cais das Colunas, naquele lapso de tempo em que a cidade ainda dorme profundamente e eu vagueio foragido entre sonhos. À minha volta, a cidade despida revela-se só para mim. Olhamo-nos nos olhos, cúmplices por sabermos que não há solidão maior do que ser invisível, nem poder maior do que saber sê-lo.
Quando era miúdo costumava pensar que ser invisível era um super-poder que me protegia do gozo dos outros miúdos, dos assaltos à porta da escola e de ser chamado para ir ao quadro quando não sabia a resposta. Cedo percebi que era uma carta extra num jogo de tabuleiro, que devia ser usada com astúcia, para não cair no esquecimento prolongado e não me tornar transparente ao cruzar-me com ela nos corredores do Camões.
Volto a sentir-me amaldiçoado pela invisibilidade deste último ano. Fechado numa casa pequena que redimensionou os meus sonhos e aprisionou os meus planos atrás de uma porta que, às vezes, nem chego a destrancar durante o dia todo. Sonho com o nariz colado à janela que me faz de ecrã para o mundo. Que me faz de barreira para a vida. Que me faz de escudo em relação aos outros. Há meses sem conta que nos mandaram esconder deste perigo sem rosto, impiedoso e desconhecido. Desde então, envelheço parado enquanto vejo os meus planos escorrerem-me pela pele e fazerem redemoinhos antes de desaparecem no ralo do chuveiro.
As palavras do meu chefe ecoam pela casa durante as noites insones. Aquele e-mail enviado para todo o departamento a explicar que fomos os eleitos para o sacrifício, num tom de inevitabilidade que nada tinha de heróico. Como se a indemnização fosse suficiente para que a nossa renúncia apaziguasse a fúria das dívidas e de uma falência iminente.
Sonhei com a minha cidade tantas vezes sem mais consolo do que a vista da minha janela para as marquises do outro lado da rua. Lisboa ficou suspensa no tempo enquanto me negava um futuro e me arrastava para o passado.
Tentei resistir o máximo que pude, certo que a minha vida me viesse a ser devolvida. Convencido de voltar ao escritório como se tivesse sido tudo um grande mal entendido, uma simulação do plano de emergência. E voltássemos todos a rir em volta da máquina do café do Manel, que já tinha virado agricultor de varanda, e da Zé, que achava que tinha encontrado o seu propósito graças ao tempo para pensar.
— Não aguento mais: rendo-me — digo com as mãos ao alto — Leva-me pelas tendas dos índios na Serafina, pede um cartucho de castanhas assadas ao Velhote da Avenida. Deixa-me encalhado nesta ilha, não quero resgate.
Hoje sonhei com ela outra vez e decidi que estava na altura de percorrê-la de olhos abertos, a roçar os dedos ao de leve nas paredes dos seus prédios e, quiçá, reencontrá-la nos nossos sítios preferidos. Decidi sair, corajoso, apesar do nervosismo deste primeiro encontro depois de tanto tempo. Domei o desalinho que tinha dentro e fora e, com estranheza, tranquei a porta do lado que me pareceu ser o errado.
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As asas de uma gaivota acordam-me deste torpor.
— Tens razão, esta é a melhor hora para percorrer as ruas de Lisboa e saltitar entre mundos sem que ninguém dê por nós.
Calço-me e chego a um Terreiro do Paço de tal modo vazio que nem sei como o atravessar; há percursos que só conheço a desviar-me dos outros.
Páro sob o Arco da Rua Augusta e, perante a visão de um horizonte sem ninguém, sai-me um riso cansado. Ecoa pelas arcadas como quando eu era pequeno e gritava “Eco!” na pala do Pavilhão de Portugal. Sinto-me traquinas e grito:
— Invisível!
— In-vi-sí-vel!
— In-vi-sí-veeel!
Mas o eco devolve-me um “é” que me soa demasiado entusiasta. Ponho-me a andar.
Caminho de braços abertos sem roçar em ninguém. Sobrevoo uma Lisboa que dorme dentro do meu sonho sem sono. Penso na última vez que levei um encontrão na rua, ou que dei dois beijos na cara de alguém, ou que segurei uma mão entre as minhas. Não me consigo lembrar do dia, nem da hora, nem do que estava a fazer quando isso aconteceu.
— Como é que me posso esquecer de algo tão essencial? Aliás, quando é que isso se tornou tão importante?
Eu e os meus irmãos passamos a infância a fugir aos beijinhos repenicados das tias, tias feitas de doces, perfumes antigos e beliscões nas bochechas. O que é que sobra delas?
A rua começa a encher-se com gente da minha imaginação. São tantas, numa vida passada nesta cidade pequena que se crê grande. Cruzam-se umas com as outras sem ordem nem lógica. Lisboa, deusa da nostalgia, oferece-me um desfile de cenas da minha infância que se misturam com a idade adulta. Vejo-me a sair de uma entrevista de trabalho ao pé do Coliseu para me cruzar comigo e o meu grupo de amigos do liceu a voltar a casa quando a noite escapa. Sigo-a com o olhar enquanto caminha nos seus passos compridos, sempre atrasada para alguma coisa. Vejo-me à sua espera, mas ela atravessa sem me ver.
Abano a cabeça e as memórias começam a afastar-se, sacudidas pelo vento. Esmorecem uma a uma enquanto volto ao presente que é o resultado de tantas subtrações. Vão-se todos embora menos a única pessoa com quem nunca soube lidar: eu.
Neste confinamento estive a mais; a casa era pequena demais para me ter ali o dia todo. Antes mal nos víamos, agora a minha presença começava a ser insuportável e ela, sufocante.
— Sei que me julgas! Pensas que sou um desempregado bêbado e inútil. Achas que não faço nada para melhorar? Achas?! A culpa não é minha! — dei por mim a berrar-lhe — Não fui eu que escolhi ficar aqui trancado em ti. Não me meti nesta encrenca, não desta vez.
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Embrenho-me naquela passagem mágica que leva do Rossio ao Martim Moniz como se abrisse umas cortinas pesadas que me levam a outra divisão de uma casa grande. Sobre mim, o céu passou de breu a azul escuro, mas a manhã ainda tarda.
Num labirinto de passagens secretas, atravesso o Jardim da Cerca. Hesito nos meus primeiros passos, semicerro os olhos para não ver as recordações e passar ao lado de momentos fechados à chave numa cave poeirenta. Acelero o passo e subo as escadas até que vejo uma mancha ao pé do caixote do lixo, parece-me um livro abandonado.
Aproximo-me.
Não é um livro, é um caderno, é… um documento. Baixo-me e leio:
União Europeia, Portugal, Passaporte. No interior vejo o meu nome: Gomes da Silva, António. O meu nome, tão comum, num rosto que me pareceu tão banal como o meu: olhos castanhos escuros, barba e cabelos fortes, escuros. Comum. Invisível.
— Pobre António, deixado ao relento num jardim abandonado. Também te fartaste de ti próprio? Perdeste-te? Será que anda alguém à tua procura?
Pego nele e enfio-o no bolso sem pensar duas vezes. Percorremos juntos os últimos metros de jardim que nos levam até à Graça.
Sento-me nas cadeiras do quiosque do miradouro – finalmente tenho lugar – e pego no passaporte do António. Nasceu em Lisboa, em São Sebastião da Pedreira, uns aninhos antes de mim, mas poderíamos ter-nos cruzado nos corredores da escola. Um nome como o meu… resultado de outros apelidos que foram ficando pela história de sítios de que já ninguém se lembra. É um pouco mais baixo, como nos dias em que me curvo com o peso de uma manhã que não suporto.
Folheio o passaporte à procura de mais, mas as páginas estão todas em branco.
— Nunca chegaste a partir? Tiveste a viagem cancelada ou perdeste a coragem? Se calhar és uma daquelas pessoas que fazem o passaporte por precaução, só para ter dois documentos.
Quem sabe o que fará o António neste momento.
O sol começa a nascer por detrás dos prédios. A sua luz fraca chega devagar como alguém que nada sem pressa até à superfície, em braçadas largas, amplas e lentas. O tempo continua suspenso, como se se recusasse a expirar o oxigénio que guarda dentro dos pulmões. Bati com os pés no fundo mas recuso-me a dar impulso para cima. Vêm-me à cabeça cenas mudas e o som das palavras distorcido pela água que entrava pelos pulmões cada vez que ouvia uma notícia diferente. Confinado, as paredes avançavam mais e mais e cada vez mais na minha direção, até que me senti engolido por uma vida pequena, claustrofóbica. Quando fechei a porta, decidi finalmente dar balanço com os pés e emergir, sôfrego pela minha cidade negada.
A minha cidade, a cidade do António e de outras 500.000 pessoas privadas de encontros fortuitos, oportunidades perdidas e opções infinitas. Olho António nos olhos e vejo a determinação espelhada no seu rosto. Um sorriso desafiador e o queixo bem erguido.
Ajeito-me em mim mesmo.
— Deves ter sido mais produtivo do que eu neste confinamento. Também não é difícil… Aposto que esvaziaste menos garrafas e apanhaste mais sol na varanda. Deves ter sempre estado apresentável nas reuniões em vídeo-chamada. E com certeza que lavaste as calças do pijama com mais frequência do que eu.
Levanto-me ao mesmo tempo que o sol começa a espreguiçar-se sobre a cidade e dirijo-me até à colina do outro lado. Aperto o António contra mim, caminhamos como um só.
Faço o caminho de regresso pelas mesmas ruas, chego ao Rossio e subo pela Calçada do Carmo até ao Bairro Alto. Os bares fechados com cadeados desnorteiam-me por uns segundos, e penso ter-me enganado na rua. Estico o braço e consigo tocar nos enfeites dos Santos Populares ali abandonados desde 2019. Réstias de esperança.
Chego a uma esquina que é uma bifurcação entre mundos: a rua em que passeei com um copo de cerveja na mão na adolescência, e a outra onde ia ao restaurante com os meus amigos ao fim de um dia de trabalho. Olho-as com atenção e hesito entre as duas ruas que me conduzem a duas estradas alternativas. Mas é quando olho em frente que vejo o percurso que realmente me espera, numa rua já fria e esquecida. Este cenário apocalíptico parece-me uma ilusão; atravesso sem medo.
Com certeza que o António viveu momentos semelhantes aos meus. Quem sabe, talvez tenhamos brindado juntos, cantando como irmãos de copos cambaleantes. Tenho a certeza que ele atravessou esta mesma bifurcação sem hesitações a tentar acompanhar passos apressados que não queria que o deixassem para trás.
Atravesso a Praça Camões a olhar para a esquerda e para a direita, é o hábito. De repente, ouço uns passos nas escadas da Igreja dos Italianos. Reconheço-os de olhos fechados, desde que ecoavam apressados nos corredores do liceu até que se começaram a espaçar em anos de ausência. Vêm sempre acompanhados de um sorriso rápido que tem o poder de me inibir.
- Pensei no que me disseste – Diz-me com um sorriso entre o trocista e o terno. – Não sei que te diga, António… Já decidi que quero ir ver o que há por aí. Nunca saí do meu bairro, é ridículo! Não tens curiosidade?
As palavras em déjà vu calaram-se a tempo. Enrolei a língua e devolvi-as ao fundo do meu estômago. O António chegou-se à frente, afastou-me delicadamente com a mão e respondeu por mim:
- Tenho. Quando os aviões passam por cima de minha casa penso sempre que queria ir num. Quero lá saber se a Faculdade fica adiada. É só um ano.
- Temos muito tempo para ser adultos.
Viro-me para as escadas mas ela já lá não está.
Chego finalmente ao Miradouro de São Pedro de Alcântara. Do outro lado, na colina que se ergue em frente, vejo os bancos do quiosque da Graça e, ao longe, um homem sentado que contempla a sua cidade, vendo todos os anos da sua vida cruzarem-se entre eles. Alonga a vista para as quatro paredes que o prenderam, até o expulsar de casa num gorgolão de um náufrago que chegou a terra firme.
Vejo como aperta o seu passaporte contra si, contente por se ter reencontrado.
Aceno-lhe enquanto vejo a sua imagem desvanecer com o vento que vem do rio e que me sussurra palavras de despedida ao ouvido.
Sinopse:
Um homem caminha por uma Lisboa confinada que o conduz a um passado nostálgico, enquanto descobre o caminho para o futuro. Um relato introspectivo de desconfinamento, que leva o leitor por ruas conhecidas dentro e fora de si mesmo. Ao longo de um dia, um personagem que tem um pouco em comum com cada um de nós, evidencia lugares de saudades, barreiras que impomos a nós mesmos e descobre possibilidades de viver um novo eu, no mundo que nos espera.
Biografia:
Marta Nunes Romão nasceu em Lisboa em 1990, tendo passado alguns anos da sua infância na Bélgica. É licenciada em Comunicação Empresarial e fez mestrado em Comunicação, Organização e Liderança na Universidade Católica Portuguesa. Cedo aprendeu que apanhar aviões e perder regressos a transformavam na personagem principal de várias histórias. Foi assim que se aventurou por França, por estudo; Espanha e Itália por trabalho; e Cabo Verde, onde sonhou de olhos abertos durante três meses de voluntariado. Desde 2017 que escreve no seu blogue diagonal.blog, onde conta sobre as vidas com que se vai cruzando no dia-a-dia e na sua imaginação. Trabalha atualmente no mundo das startups internacionais.